[PSL-Brasil] GNUs para Reinaldo Bispo

Hudson Flavio Meneses Lacerda hfmlacerda em yahoo.com.br
Domingo Junho 1 20:06:14 BRT 2014


Olá,

Chego atrasado ao debate. (Não recebi a maioria das mensagens, mas
espero que a entrega tenha se normalizado.)

Tanto as mensagens do Anahuac quanto as do Akira parecem confirmar a
morte do Movimento do Software Livre no Brasil. Mas, acho que o que
aconteceu foi perda da meta, por diversas confusões, fomentadas e
ampliadas pela situação atual -- a era dos pequenos dispositivos
eletrônicos de comunicação, que estimula a delegação a terceiros,
remotamente, de todas as nossas informações e seu processamento.

Muitos dos problemas atuais (riscos à liberdade na sociedade
digitalizada) não são exatamente problemas de licenças de software: até
virou moda sabotar as pessoas através de software livre. Então, o que
precisamos é manter em vista os verdadeiros objetivos do movimento do
software livre, não confundindo os meios com os fins. Em alto e bom som:

A RAZÃO DE SER DO SOFTWARE LIVRE NÃO ESTÁ NAS QUATRO LIBERDADES QUE
DEFINEM UMA LICENÇA LIVRE.




( Os pitacos que dou a seguir foram instigados principalmente pela
mensagem do Bruno F. Souza que pode ser lida em
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2014-May/002041.html ,
mas não se trata de crítica pessoal ou réplica específica a essa mensgem.)



O que a FSF pensa do Facebook? Ela tem uma campanha contra:

https://www.fsf.org/facebook
«««
TIME Magazine praises Mark Zuckerberg for creating a system that has
connected people around the world with each other. Unfortunately, the
terms under which he claims to have done this set a terrible precedent
for our future — for our control over the software we use to interact
with each other, for control over our data, and for our privacy. The
damage is not limited to Facebook users.
[...]
you can encourage people not to connect with Zuckerberg while thinking
that they are connecting with you [...]
»»»

«««
A Revista TIME louva Mark Zuckerberg por criar um sistema que tem
conectado pessoas umas às outras ao redor do mundo. Infelizmente, os
termos sob os quais ele alega ter feito isso estabelecem um terrível
precedente para o nosso futuro — para nosso controle sobre o software
que usamos para interagir com os outros, para o controle sobre nossos
dados, e para nossa privacidade. O dano não se limita a usuários do
Facebook.
[...]
você pode incentivar as pessoas a não se conectar com Zuckerberg,
pensando que estão se conectando a você [...]
»»»


O que FSF/RMS pensa atualmente de SaaSS (Serviço como um Substituto de
Software)? Que é algo muito ruim, comparável ao que há de pior em
software proprietário:

https://www.gnu.org/philosophy/who-does-that-server-really-serve.html
«««
Thus, SaaSS is equivalent to running proprietary software with spyware
and a universal back door. It gives the server operator unjust power
over the user, and that power is something we must resist.
»»»

«««
Portanto, Serviço como um Substituto de Software (SaaSS) é equivalente a
executar software proprietário com spyware e um back door universal. Ele
dá ao operador do servidor poder injusto sobre o usuário, e esse poder é
algo a que devemos resistir.
»»»

Notar que o texto
http://www.gnu.org/philosophy/network-services-arent-free-or-nonfree.html é
mais antigo, ainda aceita SaaS (Software como um Serviço) como um
sinônimo de SaaSS (Serviço como um Substituto de Software), e por
conseguinte é reticente na avaliação da questão. O outro texto ("Who
does that server really serve?") esclarece melhor o problema, e condena
claramente os casos que se classificam como SaaSS. Mas os casos muitas
vezes são complexos de avaliar, pois há uma mistura de serviços e programas.

Então, quem defende software livre deve estar atento!

Por exemplo, editar arquivos no Google Docs não é usar SaaSS, é usar
_software proprietário_ mesmo!



Às vezes acho que as pessoas perdem a noção do que é o Movimento pelo
Software Livre -- e talvez a própria expressão ajude na confusão.
Software livre não é um fim em si mesmo, é um meio para um fim: que as
pessoas tenham controle de sua própria computação e de seus dados. Para
que esse controle (ou "liberdade")? Para muitas coisas, inclusive ter
privacidade, evitar vigilantismo, ter segurança, etc. Mas tem gente que
não enxerga o software livre como meio para esses fins: olha apenas para
as quatro liberdades ou para a definição de código aberto, como se elas
fossem o objetivo final. Olha apenas para as formalidades, não para as
circunstâncias reais.


Então, quando se avalia o Facebook, é fácil ver que (fora os programas
proprietários envolvidos no uso dessa mídia social) não se trata de
software -- portanto não cabe dizer se é software livre ou não e julgar
por aí se o Facebook é aceitável ou não. Não é esse o tipo de distinção
a se fazer, como defensores do software livre: deve-se ir às verdadeiras
metas! Se é ruim usar Windows, iOS, Flash Player, etc. porque são
programas que, entre outros problemas, comprometem a privacidade,
realizam vigilância e são controlados remotamente por terceiros (não
pelos usuários), então como poderia ser aceitável usar Facebook? Se
Facebook, com todos esses problemas, for aceitável, então por que
criticar software proprietário, que nem sempre apresenta essas ameaças?

Do mesmo modo, pode haver quem defenda o uso de spyware pela Canonical,
até dizendo que aquilo que o Ubuntu tem não é spyware, ou que, se é para
ganhar dinheiro, então tudo bem (para evitar tais desculpas ao estilo
"não é escocês de verdade", a legislação usa a expressão "situação
análoga a escravidão", para abarcar casos de escravidão). Do ponto de
vista de quem considera software livre como fim em si mesmo, de quem não
enxerga além das licenças, é fácil ser advogado da Canonical: "olha lá a
licença, é software livre, fim de papo". Mas do ponto de vista de quem
vê o software livre como um meio para ter autonomia e liberdade, o
spyware do Ubuntu é claramente um abuso -- especialmente por se
aproveitar da inocência das vítimas desinformadas.

Outro problema similar é o da "tivoização": até mesmo software publicado
sob GNU GPL (versão anterior à 3), quando feito para funcionar em certo
hardware, podia não ser software livre! Sim, software efetivamente
proprietário sob GNU GPL! Na tivoização, o hardware rejeita versões do
programa modificadas pelos usuários -- a licença aparentemente "permite"
as quarto liberdades, mas é impossível exercê-las na prática. Quando foi
criada a nova versão da GNU GPL, com precauções contra a tivoização,
Stallman foi criticado, entre outros, por Linus Torvalds (aquele que
aceita "blobs" proprietários no Linux, ao invés de considerá-los uma
violação da GNU GPL). Houve mesmo quem chamasse Stallman de "religioso
fanático que esqueceu as próprias metas". Por quê? Porque Stallman não
se contenta com que as liberdades dos usuários sejam meramente
formalidades teóricas, mas impossibilitadas na prática. E, certamente,
Stallman não considera o software livre como fim em si mesmo, mas como
um meio para garantir a liberdade das pessoas ao usar computadores. Quem
confunde as metas não é o Stallman, é quem se limita a ler licenças sem
analisar as reais situações de uso de um programa.



Então, o que muita gente não percebe, mesmo entre entusiastas e
ativistas de software livre, é que há certas situações em que as
liberdades das pessoas são comprometidas. Situações que envolvem
tecnologia digital, mas não necessariamente software proprietário. Quem
está ciente dos objetivos do software livre consegue enxergar os
problemas de Facebook, Amazon, Google, Apple, Microsoft, etc. e não
endossa as práticas dessas empresas.


O Akira falou (em
http://listas.softwarelivre.org/pipermail/psl-brasil/2014-May/002022.html )
do uso da palavra "controle" em lugar de "liberdade" para dialogar com
pessoas do meio empresarial. Isso é interessante, quando se tem clareza
de que "liberdade" é ter "controle" da _própria_ vida; Stallman diz que
controle da vida _alheia_ é "poder injusto".

A esse propósito, vi pela internet um vídeo de um debate no FISL15, em
que alguns desenvolvedores de FOSS se queixavam da dificuldade de
oferecer certos "ERP livres", pois os clientes tinham receio, queriam
ter os programas instalados localmente em seus próprios "desktops".
Supostamente o problema seria que os clientes estariam acostumados a
"comprar" cópias licenciadas de software proprietário, mas não estariam
acostumados com serviços baseados em FOSS. Chegou-se a falar que
software livre seria mais seguro que software proprietário, etc. Mas o
pano de fundo, que continuou no fundo, é que o que os clientes
rejeitavam era SaaSS (Serviço como um Substituto de Software): os
desenvolvedores queriam oferecer _serviços_ de processamento de dados à
distância (usando software livre), o que implicava perda de _controle_
dos clientes sobre os dados de suas empresas. Ou seja: um exemplo de
software "livre" sendo usado contra os propósitos do software livre.
Certamente a licença do software é formalmente livre, mas a _situação de
uso_ proposta não é livre, pois o usuário não controla sua própria cópia
do software em sua própria máquina: ele delega esse controle a um terceiro.

Supostos apoiadores de software livre que falam de "computação em nuvem"
vão na mesma linha: jogam maliciosamente o foco em alguma licença livre
de um programa e em seguida exploram a névoa de confusão assim causada
para sabotar as liberdades dos usuários de computadores, enquanto posam
de bonzinhos.

Isso sem falar de quem usa eventos de software livre para aliciar
hackers (e nem se dá o trabalho de falar de software livre para
disfarçar!) ou para difundir pseudociência e scams. Parece que quando é
para ampliar para assuntos "correlatos" ao software livre, vale qualquer
coisa, mas quando se quer focalizar na defesa da liberdade, não se pode
ir além do que licenças de software estabelecem no nível puramente formal.



Por tudo isso, digo que

A RAZÃO DE SER DO SOFTWARE LIVRE NÃO ESTÁ NAS QUATRO LIBERDADES QUE
DEFINEM UMA LICENÇA LIVRE.


Se a confusão continuar com os termos "software livre" e "código
aberto", talvez seja melhor reduzi-los a segundo plano e defender a
_sociedade digital livre_ . Isso nos aproximaria melhor dos objetivos
finais, da meta original que deu origem ao Movimento do Software Livre:

https://www.gnu.org/philosophy/free-digital-society.html
https://cibermundi.files.wordpress.com/2013/01/uma-sociedade-digital-livre.pdf

Até mais,
Hudson Lacerda





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